Ontem, dia dos mortos, pedi licença à rotina e me estirei na poltrona. Abri um livro, mas fechei os olhos. Foi então que eu vi claramente um dos truques deste mágico feroz chamado Tempo.
Num arrasto violento, sem ordem e ritmo, puxado e empurrado, eu me senti o mais feliz dos insignificantes do Universo ao visitar todos os nadas que já fui um dia:
Fui uma das gotas de água lançadas da banheira quando Arquimedes gritou Eureka;
Fui um dos fungos que fermentaram o vinho sorvido por Alexandre Magno quando celebrou a conquista do Egito;
Fui uma das folhas de tabaco fumado por Conan Doyle no dia que escreveu o esboço do que seria Sherlock Holmes;
Fui uma das gramíneas engolidas pela ovelha sacrificada no lugar de Isaac;
Fui um dos piolhos que habitaram a crina do cavalo agredido pelo carroceiro no momento em que Nietzsche rompeu com a razão;
Fui uma das células da placenta de Cleópatra na noite que deu à luz o filho de César;
Fui um dos fios de cabelo da mulher que inspirou Shakespeare a imaginar Desdêmona;
Fui uma das botas de Napoleão quando amargava o tédio na Ilha de Santa Helena;
Fui a primeira lágrima que brotou dos olhos de Fleming quando bendisse o acaso na descoberta da penicilina;
Fui uma das pedras pisadas pelas sandálias de Jesus quando subia o caminho para fazer o Sermão da Montanha;
E quando estava envolto a uma bagunçada rede de fios capilares retorcidos, os dedos de Leonardo Da Vinci me expulsaram com violência da sua barba. Eu fui a última partícula de poeira de lá arrancada antes do último traço nos lábios de Mona Lisa del Giocondo.
Abri os olhos; fechei o livro e orei louvando todas as insignificâncias que completam a Criação.
Amém.